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Turbulência no ar

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Turbulência no ar

Para superar um dos momentos mais difíceis de sua história, Embraer investe em novos projetos de inovação e utiliza seu portfólio de aeronaves

O ano de 2020 não vai deixar saudade para a Embraer.
A fabricante de aviões de São José dos Campos (SP), pode-se dizer, enfrentou uma tempestade perfeita. De um lado, a pandemia do novo coronavírus, que atingiu duramente a aviação comercial global, fez com que as vendas de novos aviões despencassem. De outro, a decisão da Boeing, em abril do ano passado, de romper o acordo firmado em 2018 pelo qual planejava adquirir a divisão de jatos comerciais da Embraer, responsável pela bem-sucedida família de E-Jets. A companhia receberia US$ 4,2 bilhões pelo negócio e ficaria com 20% das ações da joint venture a ser criada – os 80% restantes seriam da gigante norte-americana (ver Pesquisa FAPESP nos 268 e 291). O cancelamento do negócio foi parar em uma corte de arbitragem e segue inconcluso, com as ex-parceiras responsabilizando uma à outra pelo desfecho negativo do empreendimento.

Os reflexos de um ano tão turbulento tornaram-se visíveis no balanço de 2020. As entregas de aeronaves da empresa sofreram uma queda de 34% em relação ao ano anterior (130 unidades ante 198) e o backlog, a carteira de encomendas de novos aviões, encolheu 15%, atingindo US$ 14,4 bilhões. A receita total, que computa os resultados das divisões de aviões comerciais, jatos executivos, projetos de defesa e serviços, caiu 10%, para R$ 19,6 bilhões, impactada principalmente pelo baixo desempenho da aviação comercial, enquanto o prejuízo líquido quase triplicou, saltando de R$ 1,32 bilhão para R$ 3,62 bilhões. “A pandemia afetou fortemente os nossos negócios”, reconheceu o presidente da Embraer, Francisco Gomes Neto, durante a apresentação dos números de 2020. “A crise ainda não acabou, e este ano será desafiador. O cenário continua incerto e volátil.”

A fim de retomar a rota do crescimento, a Embraer elaborou um plano de negócios, batizado de 2021-2025. Um de seus pilares são os investimentos em inovação. “Apesar desses tempos difíceis, continuamos investindo em inovação porque sabemos que o desenvolvimento tecnológico é a base para competir no mercado global”, declarou a Pesquisa FAPESP o engenheiro Luís Carlos Affonso, vice-presidente de Engenharia, Tecnologia e Estratégia Corporativa da Embraer. “Por isso, criamos eixos de inovação, áreas nas quais queremos inovar e que são fundamentais para garantir competitividade e longevidade. Estamos falando de sustentabilidade, propulsão elétrica, voo autônomo, eficiência aerodinâmica e inteligência artificial.”

Segundo o executivo, foram concebidos planos para cada uma dessas áreas a fim de que a empresa continue projetando e construindo aviões competitivos. “Buscamos investir em projetos de inovação aberta, firmando parcerias com instituições de ciência e tecnologia e outras empresas e buscando apoio de agências de fomento”, diz Affonso. As pesquisas são coordenadas pela equipe de engenharia da companhia, um de seus maiores ativos. “A engenharia é uma joia da Embraer. Temos cerca de 3,5 mil engenheiros na área de desenvolvimento, que formam um corpo único dedicado a todas as unidades de negócio”, explica.

Um dos trabalhos mais recentes, que contou com a participação de pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (Eesc) da USP, em São Carlos, revelou que modificações simples na geometria das asas podem resultar em uma diminuição em cerca de 20% do ruído gerado pelos aviões. Essa descoberta, fruto de um projeto iniciado há mais de 10 anos, recebeu financiamento de R$ 3,7 milhões da FAPESP por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite).

A área de engenharia também é responsável pelos estudos que podem dar origem a duas novas aeronaves. Uma delas, um turboélice comercial projetado para voos regionais, poderá ter versões para 70 e 90 lugares e deverá brigar por um mercado hoje dominado pela franco-italiana ATR. A proposta é desenvolver um avião avançado com 25% mais assentos do que a concorrência, 20% mais rápido e com custo operacional por passageiro 15% menor.

Airbus Linha de montagem da Airbus: companhia europeia é a principal rival da EmbraerAirbus

“Os turboélices estão voltando à moda porque são mais econômicos e produzem menos CO2 [dióxido de carbono]”, conta Affonso. “Os modelos atuais, contudo, são apertados e sem conforto. Nossa proposta conjuga as vantagens dos turboélices [sustentabilidade e economia de combustível] com mais espaço, menos ruído e vibração.”

“Há definitivamente um mercado a ser explorado, já que o turboélice regional Dash 8 [da canadense De Havilland] está morrendo [saindo de linha] e o ATR é um projeto de mais de 30 anos. A Embraer deve ter uma chance com esse projeto”, opina Richard Aboulafia, analista da indústria aeronáutica e vice-presidente do Teal Group, consultoria norte-americana especializada nos setores aeroespacial e de defesa.

O economista e especialista aeronáutico Marcos José Barbieri Ferreira, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (FCA-Unicamp), argumenta que, com o turboélice, a Embraer poderá defender um segmento que é só dela, o de aeronaves comerciais de 70 a 100 assentos. “A empresa europeia Airbus só fabrica aviões para mais de 100 passageiros. Além disso, sobra competência técnica na Embraer para projetar e desenvolver turboélices.”

O outro estudo, resultado de um memorando de entendimento assinado com a FAB, pode levar ao desenvolvimento de uma aeronave leve de transporte militar. Dimensionado para pistas curtas, estreitas e não pavimentadas, como as existentes na região amazônica, o avião vem sendo chamado de Stout, sigla em inglês para aeronave utilitária de transporte com decolagem curta. Com asa alta, capacidade para 30 soldados e porta traseira para entrada de cargas grandes, deverá substituir os antigos aviões Bandeirante e Brasília.

Uma das novidades do Stout, ainda em fase de conceito, é o possível emprego da propulsão híbrida, com motores turboelétricos, movidos a querosene de aviação e eletricidade. “O estudo [dessa aeronave] buscará também explorar alternativas na aplicação de novas tecnologias que trarão respostas ainda mais eficientes às demandas extremas da FAB, como diferentes arquiteturas de sistemas, soluções inovadoras de plataforma, propulsão híbrida elétrica, entre outras”, informou a empresa em comunicado.

“A existência desse estudo é uma boa notícia. Trata-se de um projeto de fronteira, o futuro da aviação”, afirma Ferreira. Assim como o turboélice para voos regionais, é um estudo em estágio inicial. O avião levará pelo menos quatro anos para ficar pronto, após a aprovação do conselho de administração da empresa.

Embraer Novo modelo turboélice está no horizonte da Embraer para disputar um mercado dominado pela franco-italiana ATREmbraer

O novo plano estratégico da Embraer prevê que a companhia só voltará a crescer no ano que vem. “O ano de 2020 foi de ‘sobrevivência’, de apertar o cinto e tomar medidas difíceis; 2021 ainda será um ano de estabilização. Devemos crescer a partir de 2022”, destaca Affonso. A expectativa da empresa é retomar o nível de receita pré-pandemia em 2023 e superar esse patamar em 2024 ou 2025.

Para que esse cenário se concretize, a Embraer aposta em seu portfólio, composto por modernas aeronaves. Na aviação comercial, que sempre foi seu carro-chefe, o objetivo é voltar a vender. Negociações nesse sentido são travadas com várias operadoras aéreas, entre elas a alemã Lufthansa. Quando a pandemia abrandar, a retomada do setor aéreo deverá favorecer aeronaves menores.

“A pandemia alterou a demanda por aviões. A nova realidade pode contemplar mais voos diretos, sem escala, entre cidades médias. É uma forma de as pessoas passarem menos tempo em aeroportos. Aviões com menor capacidade atendem melhor a essa perspectiva”, explica o engenheiro aeronáutico Jorge Eduardo Leal Medeiros, do Departamento de Engenharia de Transporte da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP).

Na área de defesa, a Embraer espera conseguir novas encomendas para o cargueiro multimissão C-390 Millenium, que recebeu em novembro um pedido do governo da Hungria para duas aeronaves. O país será o segundo da Europa a operar o avião, que também já foi vendido para Portugal (cinco unidades) e para a Força Aérea Brasileira, a FAB (28 aviões), parceira no desenvolvimento do projeto. O modelo é a maior aeronave já construída no país (ver Pesquisa FAPESP n° 225).

A empresa conta também com o bom desempenho de sua linha de jatos executivos, que teve a melhor performance da história no ano passado e foi responsável por 29% da receita líquida. A receita obtida com vendas foi similar à da aviação comercial (30%), que antes da crise respondia por cerca de 50% do faturamento. O portfólio da Embraer é composto por quatro modelos executivos, sendo que o Phenom 300 foi pela nona vez consecutiva o jato leve mais vendido no mundo em 2020, segundo a General Aviation Manufacturers Association (Gama).

Analistas do setor aeronáutico ouvidos por Pesquisa FAPESP concordam que a Embraer atravessa um dos momentos mais delicados de sua história pós-privatização, ocorrida em 1994, mas sustentam que a companhia tem fôlego para superar as dificuldades e retomar a rota do crescimento.

“Os resultados da Embraer não foram nem melhores nem piores do que os de qualquer outro fabricante de aviões. Foi um ano ruim para todos”, aponta Aboulafia. A Airbus, atual líder do setor, registrou prejuízo equivalente a R$ 7,4 bilhões no ano passado, e a Boeing, castigada por problemas de projeto no avião 737 MAX, sofreu perda ainda maior, de R$ 65 bilhões.

Para Aboulafia, além do desafio de se reorganizar para continuar a ser uma companhia autônoma, a Embraer precisa trabalhar de forma agressiva para alinhar os custos de sua cadeia de suprimentos com os de seus concorrentes, especialmente a Airbus. “Mas a Embraer sempre esteve bem por conta própria e continuará a estar.” Executivos da empresa asseguram que não há mais a intenção de vender suas unidades de negócios ou fazer parcerias que as envolvam.

A menção do analista à Airbus se explica porque a companhia é a concorrente direta da Embraer pelo mercado de jatos de até 150 lugares, um segmento liderado pela brasileira. Em 2017, a Airbus adquiriu o programa de aviões comerciais CSeries da canadense Bombardier, então maior rival da Embraer. São dois modelos, rebatizados de A220. O menor deles (A220-100) comporta até 135 passageiros e disputa com os maiores jatos da Embraer, o E190-E2 e o E195-E2, que têm capacidade para até 114 e 146 assentos, respectivamente. Em 2020, a Airbus entregou 38 unidades e recebeu 64 novas encomendas da família A220, composta também pelo A220-300, para 160 ocupantes.

“A Embraer perdeu uma boa oportunidade com o fim da parceria com a Boeing. A competição agora vai ficar mais complicada”, comenta Leal Medeiros. “A Airbus oferece uma gama maior de produtos, tem mais poder de negociação e vai ser uma rival mais dura do que a Bombardier foi no passado.”

O engenheiro aeronáutico Graham Warwick, editor-executivo da Aviation Week, uma das mais conceituadas publicações do setor, também acha que o cenário para a Embraer é desafiador, mas contemporiza. “A Embraer não precisa ter uma carteira de pedidos na escala da Airbus ou Boeing para sobreviver. O que ela precisa é de novas encomendas”, sustenta. “Uma vez que o mercado do transporte aéreo se recupere, novas encomendas serão feitas e a Embraer receberá algumas, o que será suficiente para seguir em frente ou até mesmo crescer.”

Projeto
Aeronave silenciosa: Uma investigação em aeronáutica (nº 06/52568-7); Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Convênio Embraer; Pesquisador responsável Júlio Romano Meneghini (USP); Investimento R$ 3.740.785,57.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.